Marilurdes Carvalho
Sobre o 20 de Novembro e o GNPR
Caros leitores, compartilho hoje um texto da irmã Maria Zenaide Costa...
Constitui-se lugar comum o entendimento de que a cultura africana e afro-brasileira faz parte da identidade do Brasil. O dia 20 de novembro é comemorado o dia da Consciência Negra, portanto comemora-se a pauta das lutas antirracista em nosso país. Memoriza-se que, desde os porões dos Navios negreiros, o povo negro sempre lutou contra quaisquer formas de discriminação, racismo e desigualdade social.
O dia 20 de novembro, evidencia e relembra Zumbi, maior líder do Quilombo dos Palmares, o maior e mais longevo Quilombo da história de nosso país. Foi neste espaço que Zumbi resistiu durante quase 20 anos, contra as investidas da elite dominante, racista. Ele foi o grande condutor da resistência palmarina. Até que foi morto no dia 20 de novembro de 1695. Sim foi morto e não vencido, pois seu legado continua vivo, incentivando e sendo referência, como um fio condutor transversalmente a todos e todas que decidem ir além do não ser racista: ser um antirracista com as propriedades e a autoridade palmarina, em tempos de hoje.
É Zumbi, um dos grandes símbolos da luta dos negros, dos povos pretos contra a escravidão, e contra todas as formas de racismo no Brasil. Sua memória, nos dias de hoje, torna-se símbolo imprescindível, de luta dos negros contra o racismo presente na sociedade brasileira, contra a mesma sociedade, nos moldes racistas atuais.
O dia da Consciência Negra quer lembrar as raízes da data, a luta antirracista e a cultura como impulsionador da busca de autonomia e de autoridade do povo preto e negro em nosso país. Mais que simplesmente um rótulo, "Consciência Negra” é sinônimo de persistência, de resistência", expressões que impulsionam o empoderamento negro.
Como sabemos, empoderamento é uma palavra de significado intenso, e para nós enquanto povo preto, enquanto povo negro, esse significado é transformador.
O dia da Consciência Negra, quer lembrar também como o racismo está estruturado em nosso país, e, ao mesmo tempo, faz memória da luta antirracista ao longo de nossa história. Vale lembrar que,
Se não fosse a luta do Movimento Negro nas suas mais diversas formas de expressão e de organização – com todas as tensões, os desafios e os limites –, muito do que o Brasil sabe atualmente sobre a questão racial e africana, não teria acontecido. E muito do que hoje se produz sobre a temática racial e africana, em uma perspectiva crítica e emancipatória não teria sido construído. E nem as políticas de promoção da igualdade racial teriam sido construídas e implementadas (GOMES, 2017, p. 19).
Dessa perspectiva, entende-se que memorizar Zumbi dos Palmares, celebrar o 20 de novembro, vai além de reivindicar políticas públicas que insira a população negra na sociedade. Mas, sobretudo, objetiva:
A superação do racismo e da discriminação racial, de valorização e afirmação da história e da cultura negras no Brasil, de rompimento das barreiras racistas impostas aos negros e às negras na ocupação dos diferentes espaços e lugares na sociedade. (GOMES, 2017, p. 23- 24).
Minha experiência no Grupo Negro Palmares Renascendo – GNPR
Primeiro devo afirmar, com convicção, que uma noite, um dia, mil anos, um livro, mil livros, não seriam capazes de comportar minha vivência junto ao nosso GNPR, ao longo destes 39 anos, desde o primeiro sentar juntos a partir de maio de 1985. Ali, salvo raras exceções, tudo praticamente funcionou em família e com gente jovem da Igreja católica. Mais concretamente com gente jovem da Igreja S. Francisco das Chagas em Bacabal; desde o assistirmos juntos com slides em películas, “A história que não foi contada”; desde as primeiras conversas que eu trazia como um espanto na alma, do encontro que eu tinha participado em São Luís com Agente de Pastoral Negros – APNs.
Das primeiras reuniões seguiram-se mil outras que se tornaram verdadeiros encontros de incentivo a cada uma e cada um para ir fazendo um reconhecimento: da história pessoal, familiar, das experiências pessoais na sociedade no universo da cidade de Bacabal. Fomos nos incentivando mutuamente e nos encorajando a falar do porão silenciado ao longo dos anos; fomos lendo, estudando em outras cartilhas o Beabá da outra história; fomos desengasgando a garganta.... fomos rasgando o coração, fomos vencendo o medo de SER quem realmente somos; fomos abrindo as cortinas, fomos descontruindo...
Vivemos um processo doloroso, qual borboleta saindo do casulo, algo como uma metamorfose... para poder depois gritar o grito rouco, silenciado, apagado, para dizer aos quatro ventos sobre nossa existência, sobre a minha existência, sobre o direito de existir e não mais ir aonde eu “pesquisava” antes, e verificava se podia entrar ou não e cabisbaixa pedia licença, e sentava aos fundos do ambiente e, aguardava os olhares, os sorrisos e até esperava que tudo acabasse logo para eu sair dali, pois não era o meu lugar...
Era o ano de 1985. Os meses, os anos, as quase quatro décadas, passando e fomos alçando voo, íngreme, porém soltos e na convicção de que outros voariam juntos. Sim, conquistamos desde o nome do grupo – GRUPO DE NEGROS PALMARES RENASCENDO. Sim, conquistamos um lugar, um espaço físico, uma sede. Fizemos barulho para a vizinhança. Fizemos barulho nas celebrações. Alguns católicos se incomodaram, desprezaram. Ouvia-se sutilmente “[...] Na Igreja agora é só macumba”. A Bacabal, se assustou, olhava, por vezes, com repugnância, outros achavam bonito, entendia como uma festa folclórica, outros até chegaram a acolher de fato. Alguma sensibilização foi sendo construída e disseminada diferente. Algum processo de desconstrução foi sendo costurada para dar lugar a outra construção histórica. Alguns vieram e foram se juntando ao grupo, de modo especial foi um público jovem, homens e mulheres.
Sim, fomos saindo da vergonha de ser preto, preta, negro, negra. Fomos entendendo, que quem deveria ter vergonha é quem escravizou e não o que foi escravizado. Fomos cantando, rufando tambores, ecoando a Mãe África, fomos entoando “o canto de revolta pelos ares, do Quilombo dos Palmares”. Sim, fomos trançando nossas tranças, vestindo uma outra camisa, primeiro a camisa de dentro de nós mesmos, no reencontro com nossos corpos negros, pretos, deixados, por vezes usados pelas elites, por vezes, hostilizados por essa mesma elite que externa sem escrúpulo o seu nojo por nós. Sim, não sem esforço, mas, com muito empenho, luta constante e seriedade, conquistamos coletiva e individualmente espaços, corações, pessoas que foram criando empatia e se juntando ao grande cordão do GNPR!
Como GNPR, saímos, gritamos ao mundo que existimos e que temos o direito de ser diferente e nunca desigual. Fomos estudando, lendo muito, discutindo, debatendo entre nós.... e fomos saindo, primeiro na Igreja de S. Francisco. Usando o poder de fala, nas celebrações, inventamos e reinventamos espaços celebrativos. Assustamos muita gente “boa” da Igreja. Não, não pode “somos todos iguais perante Deus e perante a Igreja”. Não, não pode, “estão batendo tambor, fazendo coisas estranhas na Igreja, na Celebração.
Tudo isso, faz cantar “Ó meu Rei Zumbi, por aqui vamos nós, cantando alto, pois ninguém vai calar nossa voz”. E não fomos sozinhos como GNPR, aos poucos fomos nos juntando e ganhando forças, com outros movimentos da causa e pauta negra. Em princípio, de S. Luís, fomos nos sintonizando e bebendo da água-inspiração dos Agentes de Pastoral Negros – APNs; fomos descobrindo outros movimentos a nível nacional, estadual, especificamente da capital; ampliando os espaços de Igreja católica, participamos do Projeto Vida de Negro, do Centro de Cultura Negra do Maranhão; reforçados, fomos descobrindo e indo ao encontro de Comunidades negras no interior do Estado e no Vale do Mearim. Em si falando do Vale do Mearim e do interior do Estado, ousa-se afirmar que o GNPR, praticamente foi pioneiro em muitos destes territórios. O interior do Vale do Mearim, não conhecia organização e movimento negro.
O ano de 1988 – 100 anos de “abolição”, foi crucial para um desdobramento e reinvenção do GNPR, no sentido de resgate histórico, embalado pela sociedade em geral, pois o grupo buscou cumprir seu papel e sua função, indo ao encontro da sociedade, escolas, meios de comunicação, Terreiros, Ministério Público, Tribunais de Justiça, Associação de bairro, União de moradores, dentre outros. Provocou-se debates, ciclo de palestras, mesas redondas, audiências etc. Enfim, a partir do embalo posto pelo Estado brasileiro para comemorar os 100 anos, o GNPR protagonizou com autoridade o outro lado das comemorações, o lado dos vencidos, o lado da história contada investida, isto é, o lado da “história que não foi contada” – o avesso. O lado dos que construíram este país, mas ficaram à margem, no apagamento. Neste sentido, o GNPR criou seu protagonismo, saiu à frente desvelando e desmitificando a falsa história, a contada por quem venceu.
O olhar atento para trás, entende-se que o GNPR, desde seu início, já prenunciava as consideradas, hoje ações afirmativas, adotadas para reduzir desigualdades sociais, econômicas e educacionais.
O movimento negro se radica na tradição comum, ele busca da tradição os elementos que permitam perceber-se a si próprio. Simultaneamente, ele é a afirmação de uma negatividade histórica, de um papel desempenhado na História. Ele é a busca de um outro si mesmo, para além da alteridade desse outro presente, que não é de si. (BARBOSA E SANTOS,1994, P. 46).
Assim, pode-se aferir que o GNPR cumpriu e cumpre seu papel, à medida que se colocou e se coloca em lugar de oposição aos que insistem em negar a história verdadeira da construção da sociedade brasileira. O grupo, junto a outros organismos e movimentos da causa negra marcou sua diferença na contribuição para uma nova interpretação histórica do povo preto, do povo negro, em nosso país.
Digno de menção também foi a passagem do GNPR na Alemanha. Sim, cruzou-se as fronteiras, ultrapassamos a linha do Equador e fomos. E ali, estivemos em diversas cidades e de forma intensa e vigorosa, anunciamos, partilhamos, estudamos com aquele povo europeu o outro lado da história do Brasil. Era o outono de 1995.
Portanto, o GNPR, ao longo de suas quase 4 décadas tem se colocado de pé e de forma frontal como um lugar de “negatividade histórica” da história contada oficial. Um dos objetivos, deste lugar social do grupo é suscitar indignação, exigir respeito, reivindicar políticas públicas, lutar por ações afirmativas visando minimizar e corrigir as desigualdades; trata-se do grito para que o povo negro ocupe outros lugares, como na mídia, nas universidades públicas, na arena política, no mercado de trabalho, nos meios de comunicação, na saúde, enfim, implementar ações afirmativas desde os vários setores sociais em que a desigualdade racial ainda se perpetua.
O GNPR, junto a outros movimentos com pauta positiva negra, quer sempre mais se transformar em ponto de confluência, de exercício de saberes, construídos ao longo da história pelo próprio povo preto.
Enfim, o GNPR, em seu entendimento atual, de amplitude e consciência coletiva quer ser a proposta da consciência negra, que persiste e resiste. Quer unir-se e somar forças práticas e intelectuais com outros e assim, ecoar o grito e cantar o canto da liberdade, da equidade, da soberania, do protagonismo de seu povo negro que resiste e insiste em alargar horizontes e ampliar fronteiras. E sonhar desde a força e magia que somente os que ousam podem sentir e desfrutar. No aprendizado com Zumbi dos Palmares o nosso grito foi, é, e continuará sendo: Resistir é preciso!
A autora do texto é - Mestra em Ciências Sociais/Antropologia - PUC/SP. Especialista em Docência do Ensino Superior- UCAM. Licenciada em Ciências Sociais -UNIMES, em PEDAGOGIA -FAERT, em Letras- UEMA. Professora SEDUC-MA, Professora da Universidade Federal do Piaui-UFPI, Departamento de Ciências Sociais - CCHL
Referências:
BARBOSA, W.N.; SANTOS, J.R. Atrás do muro da noite. Brasília: Minc. Fundação Cultural Palmares, 1994.
GOMES, N. L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
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Marilurdes Carvalho Nascimento: Professora, formada em Letras, Português e respectivas literaturas brasileira e portuguesa na instituição _UEMA/CESB; Especialista em Língua portuguesa (Faculdade Ateneu_CE); Coordenadora provisória do Grupo Negro Palmares Renascendo _GNPR; Professora no Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão _IEMA e na UEF. FREI Solano _SEMED Bacabal.
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